terça-feira, 31 de outubro de 2023

Vaidosa, vegetariana, 'atriz' de novela mexicana... Quem é Erika Hilton além da política: 'Uma deputada diva!' 

Primeira travesti a chegar ao Congresso, ela se divide entre Brasília e São Paulo, onde mora e namora um homem trans 

Por Carol Marques


Foto: rep/ instagram

Num desses dias de folga, Erika Hilton foi a um sacolão em São Paulo para fazer compras. Saiu de lá sem uma alface sequer. Ao contrário do que já experenciou em outras épocas, que mais parecem outras vidas, ela foi abordada por dezenas de pessoas que pediam uma foto, a elogiavam, queriam se aproximar da deputada federal. A segunda melhor do país, de acordo com o Prêmio Congresso em Foco. A primeira travesti a chegar à Camara. Uma das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo segundo a revista “Time”.

São muitos os superlativos na vida de Erika Santos Silva, 30 anos. Sua trajetória daria um livro, um filme, uma série. Da criança afeminada, que amava dublar Paola Bracho, protagonista de "A Usurpadora", a parlamentar de fala assertiva e contundente, existe um roteiro para Almodóvar se apaixonar, com drama, conflitos e lágrimas, que deu origem a um final feliz. Sim, porque a história de Erika é contada a partir dos seus recomeços.

“Hoje me sinto realizada, sim. Tudo isso é fruto da minha história, do que eu vivi, dos espaços que ocupei e ocupo. Fazer política não é uma tarefa fácil, principalmente para corpos iguais aos meus. Estamos acostumadas a ver os homens, brancos, herdeiros da política nesse lugar. Uma travesti negra inserida nesse espaço é um desafio, mas estamos mostrando que é possível”, avalia. Não à toa, há quem já aponte seu nome para a Presidência da República: “Não é uma expectativa, nunca pensei sobre. Seria algo para maturar, eu sou muito nova. Teria que estudar muito, me preparar. Ser presidente não é qualquer coisa. Por enquanto, a minha função é legislativa, o que já é muito”.

E Erika capricha na função. Além da atuação, que dispensa observações, ela transita pelos corredores da Câmara de maneira impecável. Cabelos sempre arrumados, pele tratada, maquiagem básica, looks sóbrios, porém, identitários. E não é por acaso.

"É uma questão de respeitar o local de trabalho, existe um código nisso também. Quando você vai a uma loja, num shopping, por exemplo, a vendedora te recebe elegante, arrumada, com as características daquele local. É respeito pelo outro. Essa também é a minha forma de me comunicar com o público mais jovem, que está nas minhas redes sociais. E no caso da política... Ah, a política é muito cafona! E eu sou uma deputada diva!", justifica.

“Uma diva que invariavelmente é comparada a Beyoncé (“é uma honra!”) e só se descobriu realmente bonita há pouco tempo: “Eu me achava bonita, mas se dissesse isso virava chacota. Uma coisa é você se ver bonita. Outra coisa é quando você passa a ter acesso ao que pode fazê-la mais bonita. Hoje posso usar um bom creme, uma boa maquiagem... Gosto do que vejo no espelho, de quem me tornei principalmente, Mas esse olhar só veio de quatro anos pra cá”.

Vegetariana, Erika deixou de comer carne há oito anos. Quando está em Brasília, tenta se alimentar de forma mais saudável, recorrendo a frutas, grãos, saladas, caldos. Mas com tantas comissões e pautas, de terça a quinta, quando dá expediente com hora pra começar e nenhuma pra sair, é o café que a ajuda a se manter ligada. Em São Paulo, onde está sua casa, recebe o mimo de uma tia que faz marmitas para ela. Se depender de ir para a cozinha, não conte com ela. Apesar de saber, Erika não gosta das panelas.

A vivência numa família matriarcal (ela foi criada por avó, mãe e tias) não deu a ela apenas os ensinamentos inerentes ao universo feminino, mas uma maneira combativa de se colocar no mundo. "Muito dessa autoestima, desse olhar vem delas. Mulheres muito fortes, destemidas, que me passaram essa força, a vontade de ir além, a buscar as oportunidades. E eu fui muito amada. Conheci o que é amor, admiração, cuidado desde muito cedo. Fui muito privilegiada durante muitos anos por ser aceita como eu era", recorda.

Toda essa redoma de afeto, no entanto, foi tirada dela como a um diabo do corpo, quando a mãe se converteu na Congregação Cristã no Brasil. Sob pressão, Erika se tornou refém da chamada cura gay. Foi levada para a casa de um tio em Itu, no interior de Sâo Paulo, para que se "endireitasse". Por um tempo, acreditou-se que daria certo. "Foram dois anos frequentando a igreja, indo orar na casa das irmãs, expulsei até demônio dos outros. Depois, não deu mais e voltei pra casa!", conta. A casa, porém, não estava mais tão aberta assim.

Diante da travesti que nascia debaixo de seu teto, Rosimeire expulsou a filha de casa. Erika foi para as ruas se prostituir. Um caso clássico do que acontece com boa parte da população LGBTQIA+ no Brasil em casos assim. Nas ruas, Erika, ainda sem saber, foi moldando seu ativismo.

"Eu não tinha muito essa noção, mas ver as pessoas em situação de vulnerabilidade, como a que eu estava inserida, me deu noção do quanto nós, LGBTQIA+, somos invisíveis, marginalizados. Eu ali era só um pedaço de carne, a escória", observa ela, que tenta encontrar na terapia as respostas para saber até onde esse período a influenciou na sexualidade e nas escolhas amorosas: "Ainda me faço essas perguntas, estou olhando com cuidado para isso no consultório. Porque eu sou muito tranquila com minha sexualidade, a exerço e exercito, mas é inevitável que existam traumas de decepções amorosas que tive, marcas, sofrimento".

Erika só saiu das ruas alguns anos depois, quando a mãe ouviu um chamado de Deus, que não queria mais a filha dela naquela penúria. Não teve Bíblia, parente, pastor que a impedisse de fazer o resgate. E ali nascia a estudante militante, ativista, líder de movimento, sagitariana com lua em gêmeos, a filha de Iansã hoje agnóstica e que se tornaria vereadora, deputada e vai saber o que mais.

"Minha mãe é a minha maior fã. Ela milita, vê tudo, se inteira de todas as notícias, é até mais combativa do que eu. Se não fosse por ela, eu não seria o que sou hoje. Que bom que pudemos ter uma nova leitura da nossa relação, estar num lugar de acolhimento. Minha mãe é o máximo"", derrama-se Erika, que foi criada longe do pai: "Não tivemos muita convivência, ele sempre foi ausentão. Mas não temos problemas".

O sonho de continuar esse legado matriarcal, Erika não tem. "Não tenho essa coisa de ser mãe, formar família, ter um filhinho... Tudo isso é muito trabalho", opina a deputada, que namora há cerca de 8 meses o fotógrafo e diretor Daniel Zezza, um homem trans. "Por que eu teria que me relacionar apenas com alguém que tivesse um corpo como o meu, por que não amar uma pessoa num corpo diferente? Vivi da prostituição a minha adolescência inteira e na prostituição a gente tem um grande vácuo sentimental. As pessoas trans, travestis, se transformam num objeto, alguém que não deve receber afeto, que não tem esse direito. Foram decepções, medos, abusos sexuais, emocionais, psíquicos, físicos. E talvez isso possa, sim, ter mudado o meu olhar sobre o me relacionar".

Os dois tentam equilibrar as agendas dentro do turbilhão que se tornou o ano de 2023 para Erika. "Eu não sei como ele sente em relação a tudo isso, sei que muitas vezes fica escantilhado quando saímos pra jantar, por exemplo, porque existe uma demanda de pessoas querendo chegar perto. Mas levamos uma vida muito normal, dentro do possível, nessa ponte aérea semanal. Mas pelo menos os fins de semana são reservados pra gente", diz.

Quando se despe da pessoa pública nem sempre Erika se torna apenas ela mesma. O celular acaba sendo o elo entre as duas personas. "A gente vive conectado demais, nada fica pra amanhã", reflete. Para se "blindar", ela tem testado desligar o aparelho algumas vezes, ouvir mais música ("escutei tanto o último disco da Beyoncé, que as pessoas ficaram de saco cheio. Mas ouço de tudo"), se exercitar, ver uma bobagem na televisão, como frisa. Do lado de fora, outro elo com sua vida pública: seus seguranças. Erika aumentou sua escolta: "Hoje, como deputada em Brasília , por incrível que pareça, me sinto mais protegida. Como vereadora, eram muitas as ameaças de morte, quase que diariamente".

Ela não teme por si. Teme pelo todo. O que sai das canetas dos políticos a amedronta mais. Como um dia já teve receio do futuro. Hoje, se pudesse, não voltaria no tempo para fazer escolhas diferentes. Mas gostaria de conversar com sua antiga versão: "A pegaria no colo, encheria de carinho, de afeto, gostaria de acalentá-la. Diria para que ela não desistisse, que todo aquele sofrimento, as dores, o choro, a solidão serviriam para que ela se transformasse no que sou hoje. E mostraria como ela é amada".

fonte:https://extra.globo.com/

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