Por que é importante lembrar que Pelé foi o melhor de todos
Quando o luto passar, e o sorriso voltar a ser unanimidade quando pensar em Pelé, vai ser curioso lembrar que o Rei do Futebol nos deixou só 11 dias após a decisão de uma Copa do Mundo que, enfim, coroou um dos tantos que foram comparados a ele. É como se, mesmo nos últimos dias, ou mesmo na hora de descer ao vestiário eterno, Pelé seguisse jogando. Especializado em abrir espaço entre zagueiros, não deixou sobrar muito para o debate. Partiu pouco depois de alguns ousarem falar que foi alcançado, talvez para que lembrássemos com o devido respeito de seu reinado distante.
Comparações são naturais, as justas e as injustas, mesmo com os que parecem incomparáveis. O curso da vida — em especial do esporte — clama por novas óticas, notícias, e elas precisam vir com novos heróis. O advento da memória, no entanto, é o equilíbrio necessário para as empolgações do momento, as sensações de excitação que a contemporaneidade nos dá.
Por isso é tão importante lembrar. Mais agora do que nunca, e sempre amanhã mais que ontem. Há os que viram Pelé jogar, os que viveram na mesma época do Rei e, a partir de hoje, nascerão os que vieram ao mundo depois que ele se foi. Todos têm oportunidade de seguir relembrando tudo que Pelé fez em textos, vídeos, filmes e relatos. O Brasil, que por vezes cuida tão mal de sua memória, tem por obrigação agora tratá-lo como ele tratava a bola.
Pelé morreu sem que ninguém fosse maior do que ele nos campos. Após cinco Copas, o argentino Lionel Messi —talvez o que mais tenha chegado perto de fazer o que Pelé fez em campo —, finalmente ganhou a sua, numa linda história de superação e com um merecimento invejável nos campos do Catar. Pelé disputou só quatro Copas, e venceu três, uma com menos da metade da idade que o 10 da Argentina tinha ao ganhar sua primeira.
O título de Messi, logo ele, evitou que o francês Mbappé —o mais novo candidato a talvez alcançar Pelé conquistasse dois Mundiais aos 23 anos (só seria mais novo que Pelé, com dois aos 21). Sendo assim,a Copa do Mundo só terá Pelé como tricampeão quando completar 100 anos, em 13 de julho de 2030.
Não foram só títulos: ele foi o maior de uma edição ainda como menor de idade, fez gol nas duas finais que disputou, incluindo um com chapéu em um sueco dentro da área. Deu também a assistência para um dos gols mais fantásticos da história dos Mundiais, o de Carlos Alberto Torres que fechou o tri em 1970.
Símbolo de uma época, um clube, um número, um país, uma cor, um gesto, Pelé é o maior em números, plasticidade, importância, vivência. Qualquer questionamento sobre número de gols (veja detalhado, no infográfico, os 1.282 da carreira) faz parte de um esporte já há tempo suficiente na história da humanidade para dificultar comparações.
O calendário do futebol já não é o mesmo, nem o daqui, nem o da Europa. Torneios tiveram altos e baixos ao longo dos anos. A globalização modificou por completo as relações entre clubes, jogadores e até torcedores. O modo de registrar, assistir e desfrutar do esporte já foi transformado algumas vezes desde que Pelé entrou em campo pela última vez. A única coisa que se mantém imaculada, além de sua majestade, é, justamente, a importância dos Mundiais. Por isso, os torneios da Fifa são o modo mais justo de comparação.
E ninguém é o maior das Copas por mero acaso. Pelé fez o que fez na Suécia, em 1958, no México, em 1970 — e nos poucos momentos em que os marcadores deixaram em 1962, no Chile e 1966, na Inglaterra — porque já era o maior de todos no Santos.
E o que nos dá a certeza, por essas bandas, da grandeza de Pelé é a noção de que morreu também alguém que merece a alcunha de maior brasileiro que já existiu. Pelé é parte fundamental da nossa identidade nacional. Há países que nem isso tem, quanto mais um ser humano para representá-lo. Nossos vizinhos, coincidentemente, também acharam, no futebol, uma grande personalidade para representá-los.
Se nos campos o próprio surgimento de Messi acabou por eclipsar a discussão se, tecnicamente, Maradona teria alguma chance de desafiar o brasileiro, fora dele há quem compare personalidades.
A falácia de que um foi um grande personagem e o outro, um sujeito apagado, não passa de opinião disfarçada de alguma preferência, seja ela geográfica, política, de idolatria. Normal. O que não é normal é achar que alguém se é Pelé e, de repente, se desvanece. O Rei teria tido uma vida gloriosa mesmo que tivesse saído de sua última partida e se sentado para sempre num trono merecido, mas não foi isso que fez. Viveu, acertou, errou. Ora mais, ora menos do que quando esteve em campo.
Pelé e Maradona chegaram a trocar farpas durante alguns anos, mas terminaram suas gloriosas vidas — menos de três anos separam suas mortes — apaziguados, ídolos um do outro. O argentino criticava, por exemplo, a proximidade do brasileiro com os cartolas da Fifa. Pelé chegou a rebater apontando o “mau exemplo” de Maradona com sua dependência química. O Rei e Deus, com o tempo, pareceram entender que ambos eram humanos e também falhavam.
Entre erros e acertos na vida, e a quantidade enorme de mais gols do que bolas na trave em campo, Pelé nunca teve dúvida sobre seu tamanho. E assim foi exaltado por cronistas e escritores ao longo do tempo. Dois dos maiores deles, coincidentemente, narram o mesmo episódio em dois textos diferentes, um de Nelson Rodrigues, em 1957, e outro de Armando Nogueira, em 1989.
Armando conta que estava presente, enquanto Nelson, que se espanta com os 17 anos do menino (“há certas idades que são aberrantes, inverossímeis!”), diz que ouviu falar do diálogo. Contam que na saída de um América e Santos no Maracanã, Pelé, que arrebentara no jogo, foi questionado sobre quem seria o melhor meia do mundo. “Eu”, respondeu. E o melhor atacante? Insistiram. “Eu também”.
Nelson Rodrigues conclui que “o que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma”, que Pelé já tinha. Armando Nogueira, mais de três décadas depois, relembra esse dia que conheceu o Rei para afirmar que “Pelé já era o melhor antes de ser; e continua sendo, mesmo depois de ter sido”. No dia da sua morte é possível afirmar não só que tinham razão, mas que a realeza seguirá existindo.
A despedida é difícil. Não se lida com tranquilidade com a morte de alguém que era imortal. Que virou estrela já sendo um astro. Que vivo, não foi superado por ninguém. E que morto, talvez só seja pelo que vamos lembrar dele. Vida longa ao o Rei. Nem que seja só na nossa memória.
fonte:https://extra.globo.com/
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